É curioso imaginar um mundo sem internet. Como vivíamos sem plataformas de vídeo, mecanismos de pesquisa, internet banking, aulas on-line, ligações sem custo, compras sem precisar sair de casa? São muitas possibilidades. A tecnologia facilita nossa vida e, ao mesmo tempo, se torna viciante.
As redes sociais alteram nossa própria realidade. Não é raro usá-las para encurtar distâncias, quando vivemos longe de pessoas que amamos. A internet permite que pessoas se conheçam, que artistas interajam com seus fãs, que se criem verdadeiras comunidades de indivíduos que compartilham das mesmas afinidades.
O mar de benefícios, no entanto, não pode permitir que fechemos os olhos para os riscos desse sistema global tão interligado. Bem, nada grandioso entra na vida dos mortais sem uma grande maldição, como disse Sófocles na frase escolhida para abrir o documentário “O Dilema das Redes", disponível na Netflix.
O filme trata do impacto das redes sociais sobre o cotidiano. Talvez não tão surpreendentemente, mostra como os filhos de seus próprios criadores têm pouco acesso a elas.
Esses gênios do Vale do Silício explicam como os algoritmos são utilizados para atrair a atenção dos usuários e prever comportamentos. Discutem seu impacto nas polarizações, revoltas, radicalizações e vaidades, uma vez que, conforme a conduta do usuário, o conteúdo apresentado é meticulosamente selecionado. Inadvertidamente, você acaba inserido em uma bolha, onde opiniões diversas das suas acabam sendo suprimidas.
Reduz-se a aptidão para o diálogo. A capacidade de respeitar a opinião do outro e, principalmente, de conviver em sociedade acaba sendo minimizada. É um paradigma interessante: aquilo que foi criado para aproximar as pessoas no mundo virtual se transforma em um abismo. É assustador.
E piora. O Brasil e o mundo enfrentam hoje uma onda de problemas relacionados à disseminação de fake news, notícias falsas que, quando amplamente difundidas, mudam comportamentos e podem gerar um “efeito manada”. E o poder público tem reagido no sentido de combater esse mal.
Exemplo disso é o recente acórdão proferido pelo plenário do Tribunal de Contas da União (TCU), nº 2553/22, referente ao TC 018.941/2020-6, em que se recomendou que o Governo Federal deixe de direcionar dinheiro de campanhas publicitárias para plataformas, canais e mídias que se relacionem a atividades ilegais, assim como expediu uma orientação a todos os órgãos e entidades da administração pública federal direta e indireta para que, nos contratos celebrados com agências de publicidade, sejam previstas cláusulas que incentivem a identificação e o combate a veiculação de campanhas publicitárias em mídias digitais associadas a fake news.
A Controladoria-Geral da União e a Secretaria de Comunicação Social do Ministério das Comunicações também editaram a cartilha “Boas práticas aplicáveis à utilização de mídias digitais pela Administração Pública Federal”, para orientar sobre a publicidade no âmbito governamental.
Fato é que a utilização da internet, das redes sociais e da publicidade de forma irresponsável é algo que tem sido objeto de discussão no mundo todo e acabou se tornando até justificativa para um julgamento que pode banir o Tik Tok do território norte-americano – uma pequena amostra da batalha entre EUA e China, que vêm enfrentando um clima político não tão amigável.
Mas voltando às redes, ali as pessoas se sentem livres para dizer o que querem, pautadas na falsa ideia de estarem meramente exercendo sua liberdade de expressão. No entanto, tamanha liberdade criou culturas devastadoras, como a do cancelamento.
Sobre isso, cabe uma nova menção à Netflix, agora em relação à série Black Mirror. Em um episódio emblemático, a série retrata um mundo futuro onde não existem mais abelhas. Abelhas artificiais, comandadas por uma torre digital, passam a fazer as vezes desses animais tão essenciais para o meio ambiente. Ocorre que o sistema é burlado, e as abelhas passam a ser utilizadas para matar.
Os participantes de uma rede social se organizam para subir uma hashtag e, quem for parar nos “trending topics”, ou seja, quem for o mais citado, será morto pelas abelhas controladas eletronicamente.
Trata-se de uma crítica a essa realidade de redes. É o limite da cultura do cancelamento. É a liberdade de expressão levada ao extremo.
Um exemplo disso na vida real foi a morte de Fabiane Maria de Jesus que, no em 5 de maio de 2014, foi torturada e executada por uma multidão no Guarujá, litoral de São Paulo. Ela foi confundida com uma suposta sequestradora de crianças, em virtude de um retrato falado da suspeita que estava na internet.
É evidente que os discursos de ódio somados à impunidade daqueles que os incitam, amparados pela suposta liberdade de expressão, têm crescido exponencialmente. O que as pessoas não sabem é que o seu direito fundamental à liberdade de expressão se encerra a partir do momento em que se inicia o direito do outro.
Nesse sentido, cito Bernardo Gonçalves Fernandes que, em seu livro Curso de Direito Constitucional, diz: “para a doutrina dominante, falar em direito de expressão ou de pensamento não é falar em direito absoluto de dizer tudo aquilo ou fazer tudo aquilo que se quer. De modo lógico-implícito a proteção constitucional não se estende à ação violenta. Nesse sentido, para a corrente majoritária de viés axiológico, a liberdade de manifestação é limitada por outros direitos e garantias fundamentais como a vida, a integridade física, a liberdade de locomoção. Assim sendo, embora haja liberdade de manifestação, essa não pode ser usada para manifestação que venham a desenvolver atividades ou práticas ilícitas (antissemitismo, apologia ao crime etc...)”.
É por essas e outras que tantas pessoas têm falado sobre a importância de se fazer um detox das redes sociais, responsáveis pelo aumento da ansiedade, da insegurança, do medo e do radicalismo.
Mas, além disso, é necessário que sejam perpetuadas as medidas que vêm sendo propostas dentro das instituições brasileiras voltadas ao combate da desinformação que acompanha as fake news, sem prejuízo da adoção de diligências contundentes, que visem o fim da impunidade para aqueles que cometem crimes cibernéticos.
A nível social, por sua vez, parece correto contribuir, acima de tudo, para a criação de um mundo menos antissocial e mais humano.
*Flávia Lima Costa é sócia do escritório Franco de Menezes Advogados